A dívida flutuante do Brasil
- João Eduardo de Vilhena
- 19 de nov. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 31 de dez. de 2020

Por ocasião deste Dia da Consciência Negra de 2020, o texto traz um exercício de leitura de imagem, seguido por alguns breves comentários a respeito. Sobre a data, como se verá, os recados vêm sendo dados há tempos…
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A imagem acima, aparentemente executada a bico de pena, foi desenhada para reprodução impressa. Monocromática, apresenta um cenário a céu aberto, com cinco pessoas de um mesmo tom de pele (mais escuro do que a maior parte das texturas presentes na cena), flutuando sobre uma massa d'água, em uma jangada improvisada, ou destroços de madeira. Ao fundo, vê-se um tênue corte do horizonte, com destaque para, à direita, a silhueta de uma formação rochosa proeminente. Na margem esquerda do desenho, provavelmente, a assinatura do autor da composição. Outros elementos poderiam entrar nesta descrição, claro, mas os atuais são suficientes para que se pense também na frase que completa a composição: "a dívida fluctuante do Brazil".
Antes de prosseguir, vale lembrar algo fundamental: uma boa descrição prévia é antídoto certeiro contra conclusões precipitadas. Quanto mais velozmente o entorno apresentar imagens de naturezas variadas e em grande quantidade, maior a necessidade de cautela, de uma pausa respiratória e dedicação ao ato seminal da descrição. Descrever uma imagem é dizer a si mesmo o que se vê, é transformar percepção em pensamento e pensamento em palavra. É etapa essencial para moldar quaisquer saberes produzidos a seguir. Descrição mal feita, apressada, é certeza de equívocos na interpretação, palavrório sem nexo, experiência sem aprendizado, energia e tempo desperdiçados.
Logo, lapidando a descrição anterior, com foco nas figuras humanas, vê-se:
um homem negro, idoso, de cabelos e barba brancos, vestido com uma camisa também branca e calças escuras arregaçadas abaixo dos joelhos; está sentado, com o pé direito dentro d’água; o pé esquerdo, descalço, encontra-se na embarcação, apoiando a perna flexionada que, por sua vez, sustenta o braço que apóia a cabeça; o olhar do homem fixa-se adiante, no horizonte, com a face levemente erguida em sua direção; seu pé esquerdo encontra a perna esquerda da segunda figura;
a segunda figura é uma criança pequena, praticamente um bebê, ajoelhado com o corpo voltado para sua esquerda; seu braço direito é sustentado pela mão esquerda de outra figura, e subentende-se que o mesmo ocorre com seu braço esquerdo, dado que o desenho do tronco oculta o outro membro, aparentemente sustentado pela mão direita da mesma figura; olha para a frente ou na direção da figura que o apóia;
a terceira figura é a de uma mulher sentada, com a coluna ereta, aparentemente com olhos abertos na direção dos que lêem a imagem; com o ombro direito coberto por um tecido da mesma cor do já citado na primeira figura, traz o colo aberto para amamentar, no seio esquerdo, uma segunda criança; a base de seu tronco aparece encoberta pelas figuras à frente;
a quarta figura é a mencionada outra criança, que aparece muito parcialmente, igualmente encoberta pelas figuras à frente; alimenta-se do seio da terceira figura, enquanto ergue o braço esquerdo em um gesto indistinto;
por fim, a quinta figura é a de um homem, sentado, com a perna direita flexionada, e o que parece ser o pé direito descalço (proporções inusitadas levam a duvidar da precisão deste dado) próximo do joelho esquerdo; a perna esquerda pende para fora da estrutura flutuante; o tronco inclina-se para a direita, para amparar a primeira criança pelos braços; está vestido do mesmo modo que a primeira figura descrita, mas aparenta ser mais jovem: calças escuras à altura dos joelhos e camisa branca entreaberta no peito; por fim sua cabeça gira para a esquerda, fitando o horizonte, na direção quase oposta à contemplada pelo idoso; encontra-se de olhos abertos.
A dívida flutuante do Brasil. Em economia, dívida flutuante é um débito temporário contraído pelo Estado, com previsão de quitação para curto prazo, mas que AINDA não foi saldado. Juntando as peças já disponíveis: algo visível na imagem é devido a alguém ou deve-se a alguém a compensação por algo. E o devedor é o “Brazil”.
A menção ao país é o que torna certos elementos da imagem mais discerníveis, aprofundando o que se colheu na descrição. O horizonte, ao fundo, não é qualquer horizonte, trazendo o Pão de Açúcar, inconfundível para leitores brasileiros (especialmente os cariocas) o que traz a sugestão de que se trata de pessoas negras à deriva, em água salgada, no litoral do Rio de Janeiro. Não há marcações temporais visíveis na imagem, mas pode-se inferir, pelos trajes que cobrem três das figuras, combinados aos despojos que as mantém na superfície, de que se trata de pessoas negras e, no mínimo, com poucos recursos à disposição. Estar à deriva nem sempre é estar perdido, mas quase sempre pode significar abandono.
A partir deste ponto, resta recorrer aos (poucos) dados externos disponíveis: o desenho, intitulado "A dívida fluctuante do Brazil" (de autoria até o momento desconhecida), circulou pelo Rio de Janeiro no ano de 1896, nas páginas de um periódico chamado "Bazar Volante”, cento e vinte e quatro anos atrás. E agora, Clio?
No ano de 1896, no Rio de Janeiro, capital da república brasileira, vivia-se o oitavo ano desde a assinatura da lei de abolição da escravatura. A Lei Áurea, de treze de maio de 1888, fora assinada em condições “curiosas”: na ausência de D. Pedro II, o imperador, coube a sua filha, a princesa-regente, Isabel, tomar uma pena de ouro para rubricar um dos documentos mais breves da história brasileira; a assinatura da lei, acabando com a escravidão em território brasileiro, chegou depois de as coisas, na prática, já terem - há tempos - tomado rumos próprios.
Em seu perverso laconismo, a Lei Áurea acabou com a escravidão sem propor absolutamente nada que pudesse ajudar a orientar qualquer um dos envolvidos no processo, especialmente os ex-escravos. Desde aquela época, qualquer brasileiro que se preze é incapaz de ignorar o que, realmente, ocorreu a partir daquele momento: o fim da escravidão não findou o preconceito étnico que o sustentava, nem as justificativas (todas) ilegais para a discriminação e a desigualdade.
Nos últimos anos do século, período em que a imagem de que tratamos circulava, o Rio de Janeiro era um caldeirão social à beira do transbordamento. O poder imperial caiu junto com a escravidão, e o governo que o substituiu foi costurado por proprietários de latifúndios, industriais monopolistas e militares, sem qualquer participação popular, embora o nome “república”, originalmente, signifique “aquilo que pertence a todos”. Este novo Brasil de 1889 nasceu profundamente fraturado, não fazendo jus ao nome e com uma imensa dívida flutuante para saldar. No desenho que abre este texto, passado e futuro estão presentes nas figuras retratadas: o que ocupa a mente do negro idoso? O que o negro adulto pode esperar do que enxerga no horizonte? O que será de crianças cuja cidadania existe apenas num papel que não serão ensinadas a ler?
De pé em nosso 2020, nós os vemos ao longe, lá embaixo, a boiar, aparentemente distantes, até que olhamos o percurso que nos separa, pontuado de sangue, suor e lágrimas de negros e brancos e tantos outros que não souberam ainda saldar uma dívida para a qual sempre houve capital disponível. E neste momento da viagem da nau Brasil pelos mares da História, vamos protelando tal pagamento e acumulando juros, enquanto fingimos que a Constituição descreve à perfeição a realidade, quando afirma que todos são iguais perante a lei.
Enquanto as pessoas brancas, negras e de todos os outros matizes discutem preconceito e racismo (como se fosse algo pessoal, e não um atributo da cidadania), “indignando-se” diante do último “absurdo” cotidiano, daqueles que se repetem há séculos por essas terras, esvai-se a energia necessária a se aplicar no combate ao problema real: a obscena desigualdade de acesso a bens e serviços que todos os dias escolhemos tolerar.
A tal dívida flutuante permanece, e se avoluma, recordando que Estado e governo são coisas distintas: todos os brasileiros - especialmente aqueles que tiveram a oportunidade de estudar mais ou têm um pouco mais garantida a subsistência - são responsáveis por cobrar do Estado que este honre seus compromissos, com todos. Somente começaremos a ser um país quando respondermos com ações concretas ao olhar da negra que amamenta o futuro. Por ora, olhemos em torno, para ver como ainda nos apequenamos todos os dias, um mero amontoado de gente, boiando de forma precária, com destino incerto.
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