Em uma caverna fria, gelada, pessoas se agitam na semi-obscuridade. Algumas delas portam tochas rústicas como suas vestes. Em um canto, uma delas desce de um tronco próximo à parede, segurando uma tocha e uma cuia, e se vai em direção à luz distante. Nos voltamos novamente para a parede e, acima do tronco, enxergamos com dificuldade o motivo pelo qual aquela pessoa esteve ali por alguns momentos: na superfície irregular da rocha, o artista produziu o recorte de sua mão direita. Diante de nossos olhos não está o desenho de uma mão, mas o entorno do que seria esta mão. Ilhados por uma mancha avermelhada, cinco dedos e uma palma aberta. Abaixo, ao lado do tronco, várias gotas de sangue ainda quentes.
A cena acima narrada é ficção, mas o será inteiramente? De fato, há muito tempo atrás, alguém fez algo parecido, no interior de uma caverna: quarenta mil anos nos separam daquela mão, deixando-nos com este negativo de mão que abre este post. Diante de nós, seja na caverna, em papel ou por meio de uma tela digital, um dos retratos mais antigos já produzidos. Traz de volta um indivíduo há muito desaparecido e, ao mesmo tempo, carrega consigo todos aqueles que o cercavam e todos os que se seguiram. Todos nós.
“Estive aqui”, é o que o artista diz em um contorno de mão, sem utilizar uma palavra sequer. O retrato em questão também é o retrato de um fazer. “Arte" é derivação direta do vocábulo latino “ars”, que significa - literalmente - “fazer”. Qualquer coisa feita por uma pessoa, por mais prosaica, mais cotidiana, no limite, é arte. Mas todos sabemos que a arte também escapa do corriqueiro, é um caminho para revelar outras camadas da existência. A “nossa” mão traz os dedos espaçados de modo irregular, o que lhes dá, de certo modo, mais “vida”. O sangue foi passado e aspergido na parede, estando menos densamente distribuído à medida que se afasta para as extremidades da “imagem”. Além disso, a parede encontra-se graciosamente lascada na linha do pulso, como se fosse um convite para destacarmos essa anti-mão da rocha no entorno. É um fragmento de mão, o fragmento de alguém.
“A mão que não é” é um retrato do gênero humano, mais do que de um indivíduo singular ou de alguma realização particular. É um lembrete de que todos passamos por aqui e que as marcas que deixamos vão ser interpretadas das mais variadas formas, algo que não temos como controlar. “A mão que não é” nos lembra de que nossas mãos são o meio pelo qual concretizamos aquilo que nos vai na mente, a mão que cria e destrói, que revela e esconde, que se abre e fecha para moldar a permanência num mundo impermanente. Basta fazer. “A mão que não é” acena, simpática, para nós, há milênios, com a promessa de que a arte é um ingresso para o espetáculo da eternidade, mesmo depois que por aqui passarmos.
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