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Foto do escritorJoão Eduardo de Vilhena

As musas - Calíope

Atualizado: 22 de dez. de 2020


Calíope, musa da poesia épica, s.d. - Giovanni Baglione (1566-1643). - Calíope, musa da poesia épica, s.d.

O dom da fala não é exclusivo dos humanos. Em verdade, os animais falam, toda a natureza se comunica, em uma miríade de linguagens. Mas apenas aos humanos foi facultada a capacidade de tecer narrativas. E independente da forma de arte escolhida pelo narrador, uma brilhava acima das demais na Grécia Antiga: a arte do discurso, do uso da voz para falar diante de uma audiência.


Nos encontramos mergulhados num mundo de imagens e textos voando vertiginosamente em velocidade digital, no qual o analfabetismo (em suas diversas modalidades) não é apenas desvantagem, mas a mais cruel das exclusões, atestado da incompetência do coletivo em garantir o básico a cada indivíduo. Para nós, a necessidade e o valor do suporte escrito, a "prova" concreta do que se diz, está em um nível absolutamente diferente do que textos e imagens representavam para os gregos de há alguns milênios. Dito isso, as maravilhas operadas - em qualquer época - por aqueles inspirados pela musa da vez - Calíope - ganham mais justo reconhecimento.


Calíope, "a da bela voz", é a inspiradora da eloquência. "Eloquente" é "aquele que encontra facilidade para expressar-se por meio de palavras". Sejam elas escritas, ou pertencentes a uma canção, ou se vierem amparadas por imagens... em todos os casos, a musa estará lá para inspirar o narrador merecedor de suas benesses. No entanto, se nos voltarmos para a realidade de diversas cidades gregas ao longo de alguns dos séculos pertencentes à Antiguidade, nada era visto como mais sofisticado e desafiador na arte narrativa do que a eloquência daquele que discursa. Entre os gregos, e podemos pensar aqui na Atenas democrática como o exemplo mais significativo, qualquer fala em público é - potencialmente - uma fala política. Só por serem enunciadas, as palavras tornam o orador responsável por elas e, os ouvintes, seus cúmplices.


Falar bem em público, de improviso ou com preparação prévia, era (e continua a ser) uma enorme conquista para qualquer um que se arrisque na empreitada. Não se trata apenas do que se dirá, mas também (e talvez, especialmente) de como se dirá o que deve ser dito; do tom de voz, passando pelo gestual, as ênfases, as pausas e arrancadas respiratórias, os silêncios e as fugazes entrelinhas; há o começo, o meio e o fim; a matéria principal, os elementos secundários, o todo, as partes... Ufa! Mesmo uma tentativa de descrição de tal atividade já se revela intrincada, fugidia e exaustiva...


O orador inspirado conecta-se a seu público, faz com que todos o vejam como humano, mas - por vezes - se convençam misteriosa e crescentemente de que ele traz consigo um algo mais, algo maior. Paradoxalmente, enquanto toca cada um, torna-se cada vez mais distante de todos, dado que parece pairar acima daqueles que o ouvem. Esse efeito suspensivo, essa sobrenatural flutuação é manifestação dos dons concedidos por Calíope.


Voltando ao princípio, não basta ter o dom da fala. É necessário deter o dom do bem narrar, do uso da voz na condução de seus semelhantes pelas florestas da linguagem: o bom narrador é aquele que guia seus seguidores no desconhecido, caminhando decididamente no mesmo lugar no qual os demais apenas tateariam e tropeçariam. O narrador apresenta-lhes um mundo arriscado, impetuoso, no qual poderiam perder-se para sempre sem sua condução. Ao final, todos acabam em segurança do outro lado, aliviados, por terem vencido o imponderável.


A imagem que abre este post é uma representação comum de Calíope: portando uma coroa, símbolo de sua realeza (neste caso, de sua descendência divina), enquanto olha para o tomo no qual inscreve seus argumentos, oferece com a mão esquerda (que está acima da linha da cabeça) uma coroa de louros, símbolo da vitória, a alguém que não vemos; na mão direita, porta um buril ou instrumento para escrever. Embora sua figura esteja retorcida, todos os gestos aparentam graça, ponderação, segurança. Está relaxada enquanto oferece, quiçá, a um mero mortal como nós, a oportunidade de que este brilhe diante de seus semelhantes, pela magia fugaz e transformadora produzida pelas palavras. Vale notar o volume da Eneida, valioso poema épico de Virgílio (70-19 a.C.), no canto inferior direito, testemunho da inspiração necessária à produção de grandes obras narrativas.


Calíope teve algumas poucas participações em episódios narrados no cânone mitológico greco-romano, que podem revelar um pouco mais a seu respeito. Dada sua capacidade argumentativa e de ponderação, foi juíza, chamada a arbitrar disputas entre deuses ou entre deuses e mortais, como no caso em que as deusas Afrodite e Perséfone (respectivamente, Vênus e Prosérpina no cânone mitológico romano) batalhavam a posse exclusiva do mortal Adônis. Foi também atribuída a ela a maternidade de alguns poetas e músicos, resultado de seus encontros com humanos. O mais célebre seria Orfeu, o mais famoso compositor, poeta e músico da tradição grega.


No caso de Orfeu, teoricamente, a nossos olhos atuais, ele deveria ser filho de Euterpe, sua "tia", musa inspiradora da música. Porém, independente dos dons musicais por ele demonstrados, o que encantava em suas músicas era o conteúdo poético, aliado ao uso da voz para cantar e encantar. Na tradição grega, o canto e a fala estão mais próximos entre si do que o canto e os sons produzidos por instrumentos musicais: o cantor e o orador são irmãos. Não à toa, Calíope foi instrutora do herói Aquiles na arte de cantar em banquetes, uma modalidade "pública" do canto.


Um falar qualquer pode ser digno de atenção, mas são grandes as chances de este submergir nas águas do Tempo, perdendo-se. Porém, se um discurso refletir a eloquência inspirada por Calíope, o orador e suas palavras, e mesmo o contexto no qual foram ditas, imortalizar-se-ão, alçados a uma condição próxima à dos deuses, com o orador e sua fala servindo de modelo para os tempos vindouros, estímulo a novas conquistas oratórias, fazendo suspirar todos aqueles que anseiam por dias melhores.



[Giovanni Baglione (1566-1643). - Calíope, musa da poesia épica, s.d.

Óleo sobre tela, 195x150 cm. - Museu de Belas-Artes, Arras, França.]




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